quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Carta Sobre Ontem

Querida amiga,

Acordei. Acordei com o corpo desperto, vontade de sentir o vento [frio] de Montevidéu passar por mim. Corrida leve na Rambla. Não hesito. Num salto, logo sigo em direção a Bulervard España. Novos caminhos, nas mesmas ruas.

Meus passos logo tomam o ritmo de uma caminhada em direção ao amor [ainda que não saiba o que é amor]. A cada passo a curiosidade lê a vida matutina da cidade. Os olhos se iluminam de novidades, de ruas, de esquinas, de casas, de parques e de pequenos segredos insuspeitos.

Pouco a pouco uma pontinha de mar se revela às retinas. Um sorriso se coloca. Sinto música preenchendo os vazios. Não é uma caminhada qualquer.

Pouco a pouco percebo que na maturidade o amor se revela aos poucos. Passaram as noites de encantamento. Os jantares en la ciudad Vieja. O gramacho naquele pub de subsolo com gosto de tradição. A sedução do primeiro encontro. Ficou a curiosidade pelas pequenas imperfeições, as irregularidades de caráter,  as falhas. Restou o desejo pelo amor real que se constitui pelo olhar atento a tudo o que faz parte.

Imagino onde se escondem suas sombras enquanto as palmeiras contrastam com o imenso céu azul desta manhã fresca, quase fria.

Um peixaria rude se apresenta ao olhar atento e a quem conhece a cidade dois ou três degraus abaixo do calçadão da Rambla. Fotografo. Vejo a cidade um pouco além de sua bela arquitetura e seu urbanismo de escalas largas.

Sigo. [sempre sigo]. Miro à direita e vejo Bulevard General Artigas ampla. Arrisco-me a encarar o percurso. Ora caminho, ora corro e assim percorro minha história ao atravessar a principal avenida da cidade.

Nem sempre é fácil e em dado momento sinto-me perdida. Há um homem que dorme sob o viaduto centenário. Sei onde estou, sei aonde essa alameda conduz. A história ensina. Sigo. A história também faz parte. E ainda que não a entenda realmente, impossível não estar de acordo com o fato de que foi assim que aconteceu. É assim a cada passo. Um homem dorme sob um viaduto. A população negra é de 7% e pouco os vemos nas ruas. Sim, é assim. Os povos originários foram dizimados completamente. Sim, é assim.

Agora vejo e tudo faz parte da cidade. Montevidéu vai deixando aos poucos de ser uma idealização romântica de perfeição para tornar-me madura. Vejo beleza e verdade na calma e nos olhos profundos de sua gente. Gentileza nasceu aqui.

Deixo-te agora, querida amiga, com meu amor pulsante e vivo. Deixo-te sem véus românticos e sigo.

Anita


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