sexta-feira, 14 de junho de 2019

Arquivos

Querido Caio,

Nem sei se é para ti que escrevo. Quem é o destinatário desta carta? Toda carta tem um destinatário, mesmo que ele não saiba.

Há dias quero escrevê-la. Chego a compor trechos inteiros em minha cabeça. Adio. Adio olhar para parte de meus arquivos em desalinho, para paisagens internas recortadas como um quebra cabeças.

Há três dias tive de olhar. De súbito um trailer passou por detrás dos meus olhos. Não pude vê-lo, não pude deixar de ver. Abri os arquivos suspensos e [re]fiz percursos. Como quem revisita a própria trajetória espalhada em papéis e poesias, classificadas em pastas trocadas, distribuídas em escaninhos diversos.

Nada é acaso. Algo [des]organizado organiza uma estratégia do arconte. É isso? Deixar fragmentos de memória soltos por aí, desassistidos, ao relento impede que a paisagem seja vista em sua totalidade. A história partida, decepada em várias partes e espalhadas pelos postes da estrada real. Se estivessem todas as partes num só lugar eu as veria.

Ver às vezes é muito perigoso.

Ver abre as portas da consciência. [Des]ver não é possível. Assim que agora vejo os fragmentos de memória espalhados no chão da sala. São tantas peças. Vejo-as todas e quase posso tocar a conexão entre elas. Encaixa-las me coloca diante da paisagem que vem se apresentando há tantos anos partida em pequenos pedaços de afeto. Agora vejo. Não há como desver.

Estou diante do desafio de expressar. Palavra(s) solta. Derramada por descuido sobre o branco do papel.

Estratégia de arconte?

Estou diante do desafio de enviar a carta. Não há como desver, assim como não há como [des]dizer. E o que será de nós quando souberes o que meus arquivos revelaram?

sempre tua,

Anita Lopes