sábado, 1 de janeiro de 2022

Saudades de mim

Setembro, 2020. 

Caio,

Hoje eu acordei com saudades de mim. Saudades de dançar sem roupas no quintal, cozinhar mil coisas ao mesmo tempo. Música, longos banhos, nenhuma agenda e um inadiável compromisso comigo. Senti saudades de comer devagar ao som de sonhos. Saudades de abrir as janelas e o coração. Senti saudades de escrever. Senti saudades de te escrever. E talvez tenha sentido saudades de ser lida.

Ser lida? Ser lida. Lido todos os dias com a lida dos dias, dos desafios, das emoções, de mim e de minhas circunstâncias. Lido com o confinamento e com a liberdade de ser. Lido com a vida como ela é, brutalmente real. Lido com as ilusões que partiram e me deixaram com a mala na mão diante da estação. Lido com a necessidade real de ser lida por que mesmo o sol quente já não é suficiente para aquecer a minha pele fria.

E assim passam os dias reais. Estou bêbada de tanta realidade. Faz mais de ano e dia que não escrevo ficção, que não invento amores impossíveis e serenamente me sento para tomar sol no batente da cozinha olhando o muro encardido pelos meses de isolamento compulsório. Está úmido... em tempo de desmoronar diante da vida real. 

A realidade é um silêncio e longos dias. Um silêncio que se expande no canto dos passarinhos, no miado dos gatos e nos latidos insistentes da cachorrada da rua. A realidade é um cotidiano sem grandes novidades aqui dentro e um mundo em ruínas lá fora, onde o número de mortes físicas se acumula com o crescimento exponencial do número de mortos-vivos. 

Somos o futuro sem futuro. Somos o presente se reinventando a cada amanhecer. Ou sou só eu? Talvez seja apenas eu aqui entre as paredes da casa, tomando sol no batente da cozinha, mudando de cômodo como quem muda de casa, variando as paisagens ao mudar o angulo ou a perspectiva da sala de estar. 

Talvez seja apenas eu... Arrastei os móveis. Mudei tudo de lugar. Transformei espaços. Só. Só o quarto de dormir permanece igual: Mesma cama de casal, com dois travesseiros, coberta com o lençol de flanela xadrez a aquecer as noites sempre frias da casa vazia, da cama vazia, desta vida cheia de novas perspectivas para o velho dilema. Ser ou não ser... Ficção.

Na dúvida... sigo viva, estou farta de fake views.

Anita Lopes 


P.S. Escrita em 26/09/2020, mas ainda sinto saudades até do sol no batente da cozinha. Será que minha palavra é saudade?

Guardada em velhas caixas [Carta Inacabada]

Querido Caio,

A falta de nossas trocas me afeta. Nossos afetos e afagos semânticos têm constituído a ponte que me une ao mundo tal qual o conhecemos. 

Sem ela o silêncio toma conta do entorno: Ensurdeço, e muda caminho pelas ruas da cidade usando passadiços. Ao atravessar um viaduto, desacelero, perco o ritmo, perco-me do que me conecta e percorro a pista na velocidade dos carros que por ela trafegam e, por um instante, minha mente vaga pelas possibilidades que a pressa dos motoristas me oferecem. Paro. Penso nas manchetes e nas providências. Não estou pronta ainda, não por falta de cansaço.

Tenho vivido tão intensamente minhas possibilidades, que aos 40 anos sinto-me exausta.




observação da autora: escrita em 19 de maio de 2009. Encontrada entre arquivos em 2022  



Malabarismos

Querido,

Tanto tempo. Tanto tempo sem notícias, sem palavras, em silêncio comigo. Do encontrou restou a força de uma certeza: é possível!  E da certeza emerge a coragem para seguir adiante [como sempre] sem olhar para trás. 

E sigo entre encontros e despedidas, sinto pulsar em mim o pulso que ainda pulsa. Sempre. 
E é nesse pulsar ritmado que te encontro, ora próximo, ora distante. Ora presente, ora alheio aos malabarismos que me pego fazendo para chamar tua atenção. 

E rio. Por que preciso fazer tantos malabarismos? Por que ir tirando véus diante de um observador que olha em outra direção - em outras direções - a esmo. Não sei. Sei que assim tem sido. E isso revela muito de mim nesse momento. 

Mera fotografia de um instante. Nem real, nem imaginária. Apenas o instante em que ocorre [te ocorre?]. 

Somos nada e somos tudo, em instante nos metamorfoseamos. Eu sou. Tu és?

Sei não, sei nada. Sei apenas do que sinto, das sensações que gritam es sussurram em meus poros cada vez que nos encontramos em sonhos tão reais e em realidades tão efêmeras. 

Tu, como eu, é andarilho nômade pela própria natureza. Nos encontramos nas andanças, seguistes e eu aqui vivendo a experiência de permanecer nas montanhas inebriandes, nas Minas. 

Aqui permaneci enquanto fostes. Seguistes. Segui. Sigamos. 

Assim ficamos. 

Tua

Anita Lopes

P.S. Regressarás das montanhas bolivarianas?




Carta a Nino

Nino,

Caminho carregando-te comigo.  Não era assim. Aos poucos sua ausência vai  corporificando ao meu lado. O ruído das ruas se mistura ao silêncio profundo em mim e vejo meus olhos percorrem as travessas a te procurar. 

Encontro-te nos parques, nos mercados, nos livros. Quero levar uma parte de ti na bagagem para devolver-te. Quero encontrar-te e te contar segredos e me dizer inteira. Quero dizer o que não digo. E ver tuas mãos deslizando meu corpo e teus dedos a contar minhas costelas. Quero sentir o cheiro dos teus olhos mergulhando nos meus como pêssegos maduros [mesmo que inseguros].

Sinto-te aqui, ali, acolá e na madrugada sinto visitar-me em sonhos. Sonolenta, recebo-te em minha alma, irrigo a terra escorrendo serena e continuamente. Envolvo-te com meus passos, abraço-te em cheiros doces.

Nino, menino lindo que envolve no sorriso do tamanho do Monte Pascoal. Sorriso da descoberta de um dia livre de suposições esdrúxulas, preso em dúvidas perenes sobre Ser ou não ser.

Nino, menino que não me pertence, mas a quem dei meus olhos e minha boca sem pudor ou receio.

Nino-te, nina-me. Somos adultos, podemos. 

Vem ser em mim, o que já sou em ti. 

Suportemos a leveza insustentável de sermos algo desconexos, algo fora das normas. 

Sejamos, eu e tu, apenas o que somos. Eu e tu. Aqui e agora. 

Hoje tua, aqui nua...

Anita Lopes

Carta para Maria




Tanto tempo sem notícias. Parti. Sinto muito por tê-la abandonado desta forma, sem informe. Os últimos dois anos te deixei por mim, te deixei por ti. Soube, ao vê-la em sua saudade [que também é minha] que precisava me recolher para que você gestasse e parisse teus quereres e teus fazeres num mundo em profundas transformações. 

Não foi com tristeza que me afastei de ti, de Caio e de nossas tessituras epistolares. Foi com serenidade que o fiz. Precisava  - depois de tantos anos - descansar meus desejos intensos, rápidos e fugidios. Precisava silenciar Vênus em Áries e dar lugar a Saturno, o senhor do que é, como é, enquanto você despertava do seu sono eterno. 

Aquela Vênus que me acompanha desde o berço me fez tão intensa em invencionices, me fez quase impostora em amores cazuzianos. O fervor das estórias que criei me encheram de alegria, prazer e dor na mesma medida. Tantas [des]ilusões. Tanta aflição e lonjuras. E tu, Maria, serena observava desde um canto de parede minha loucura com coração aquietado pelas distâncias. 

Tuas distâncias, mulher, te protegeram dos amores insanos que inventei, mas acredite... Também escreveram teu epitáfio, te afastaram do amor, da paixão, da vida vivida te recolhendo às linhas das teorias estudadas às quais te dedicou por tanto tempo silenciosamente. Teus muros foram construídos em livros. Tese por cima de tese criaram a Maria sozinha dividida entre solitude e solidão. Protegeram e criaram dor. 

Sim! Eu confesso que nossa dor [sim, nossa!] - a inventada e a real -  me levou a extremos [como a ti no extremo oposto] e com o passar do tempo a pujança se transformou num voo rasante de carcará sobre os largos campos áridos e esvaziados que não saciava minha fome, nem preenchia teus vazios. 

Precisávamos, acredite, deste tempo distanciadas para finalmente nos reaproximarmos, cautelosas e sem máscaras. Já não preciso fingir amores impossíveis, enquanto tu podes - pouco a pouco - deixar cair as máscaras e abrir portas e janelas para que novos ventos te atravessem e tragam a suavidade das brisas de fim de tarde - hora nostálgica de la Rambla

Teus desejos, mulher, são travessia. Atravessa. Atraversiamo. Estou aqui, bem diante de ti, despida de ficção e poesia para cantar contigo e escoar plena nossos quereres.  Sei, somos contradição e completude. Somos liberdade e controvérsia. Somos tantas em nós. Somos, apenas, mulher no plural diversas e una. 

Por isso, cá estou, despida diante do espelho, sangrando, real e ficção na unidade do Ser. Íntegra e nossas contradições. Eu, reconvexo,  real. Dançando minhas loucuras, nossas lonjuras, plena de encontros e despedidas. Sou isso e também somos profundezas e grandezas que desconhecemos. 

Então, seguimos em nossa permanência aconchegadas no ninho sendo passarinho. Voemos! 

Sempre tua, 

Anita Lopes