sábado, 10 de novembro de 2018

Todas as Cartas de Amor são ridículas

Querido Caio,

''Dizem que o amor é lindo, mas também é brega. E se não é brega é porque não é muito''. Assim começava a dedicatória do livro que ele me enviou de Nova Iorque. O ''Pequeno grande livro sobre o amor''. Ele o comprou no Metropolitam Museum.

Caminhei quase 15 anos desde que recebi esse livro e ele me acompanha todos os dias desde então. Nada foi posto no varal [penso]. Vivemos os possíveis mesmo que inimaginável. Fizemos o percurso sem final feliz. Um trajeto sem fim. Mas ao olhar para meu quintal, não posso deixar de ver as minhas horas com ele penduradas.

Horas vividas em sete cidades, como é do meu feitio. Andamos juntos mesmo separados num trecho de nossas estradas. Havia muitos ipês, cumes e vales. Havia tanto para um trecho tão curto. Tanto que memórias e livro me acompanham até hoje.

Mal posso reconhecer nossos passos partilhados nas dobras que vejo em seu rosto publicado em páginas de jornal. ''Nunca mais serei o mesmo homem'' me disse certa vez depois de sua tragédia particular. Muitos anos depois de nós dois perdidos numa noite em Nova Iorque. Agora entendo o que ele disse. Não, ele não é mesmo o homem que partilhou aquele trecho poético comigo. Ele não é mais. Tornou-se quem é e estampou sua verdade em páginas eletrônicas de tinta e de papel.

E nossas horas penduradas... eu as vejo longe, entre um amor e outro, entre um encontro e outro, eu as vejo em cada detalhe do livro que me acompanha, no possível vivido, no impensável realizado, no não que disse à idealização de nós dois.

Sabes bem que venho e volto tecendo a compreensão do amor em cidades.

Deixo-te assim... Sentindo lonjuras de ti e nostalgia do que vivi,

tua

Anita Lopes


sábado, 3 de novembro de 2018

Carta Entretecida

Querido Caio,

Tanto tempo para responder teu jogo de palavras. Foi um jogo de palavras, não foi? Foi um jogo de amarelinha ou talvez as palavras estiveram cruzadas e entre cruzadas nos encontros e desencontros. [Prefiro os encontros].

Não quaisquer encontros. Mas aqueles que demoram a emergir. Aqueles que acontecem despretensiosos e vão se agigantando com o passar dos dias, dos meses, dos anos. Aqueles imprevisíveis a olho nu. Em que nada é nada e daí vai surgindo um brilho pequenino. Um sorriso. Um par de olhos [nos olhos].

Eu estava na frente do balcão. Estávamos: Eu e tu - lado a lado.
Diante de nós a filosofia. Filosofia, política, poesia e absinto combinam deliciosamente. O verde claríssimo vai fazendo dia nas ideias, transluz sentimentos.  Acende aos poucos o calor de uns desejos singelos.

Encontro entretece o desejo que me acomete entre a janela e o balcão. E então minha poesia encontra tuas letras e teu jogo de palavras. És Caio ou somos? Quem somos, afinal? Idas e vindas, cartas sem fim, olhares, sorrisos, piscadelas, beijos arremessados ao vento, barulho de talheres, de copos, de fantasias proibidas, absinto... Sinto? Sentes?

Jogos, palavras... Há uma química no ar. Entre nós - Caio, Anita, Virgílio e quem... Nós entre nós. Enovelando a teia que nos tece. Virgílio por fim encontra seu lugar no tecido que tecemos e entretecemos: Coringa.

Sede. Minha boca deseja mais um gole de absinto. Sinto o verde intenso e úmido na boca seca. Aquece[dor]. Fogo sagrado desse lugar que nos abriga há cinco anos. Do lugar que nos aproximou até minha rendição à cidade. Amo esse lugar!

Olho para a carta. Percorro tudo o que escrevi. Quero te ler através da teia e das linhas finas que vimos tecendo, sem urgências e que agora urgem [para mim].

Olho longamente para o papel fino desta carta. Talvez seja o começo de algo, talvez seja a premeditação de um fim prematuro ou o salto no abismo. Dobro o papel lentamente. Sentindo cada dobra como parte da poesia escrita a quatro mãos. Posso ver os versos nas transparências do papel, no pretexto e nas entrelinhas.

Desdobro a dobradura e lá estão os versos. Vejo-os agora em todo lugar. Começo a sentir urgências e respiro. Dobro mais uma vez com cuidado o papel. Envelopo. Olho o envelope aberto longamente. Toco a ponta da língua úmida nas bordas. Fecho desejando abrir uma vez mais. Fecho com dedos trêmulos. Desejo abrir[me].

Envio esta carta ao tempo em que te deixo,

tua sempre

Anita Lopes




segunda-feira, 2 de abril de 2018

A gramática, os silêncios e os sons

Querido Caio,

Como sabes, não sou mulher de me submeter nem à gramática, nem a cousa alguma. Ainda mais ela, que teima em encaixotar as expressões, muitas vezes, reconheço, em nome da clareza [luz?], outras por puro fetiche.

O que é a gramática afinal senão um conjunto de normas erga omnes [escuridão?] Só de ser contra todos já não me apetece. Não somos iguais! Temos saberes diversos, entendimentos distintos, referenciais inimagináveis. Como submeter a um conjunto de normas que não comporta a beleza e a pureza da língua viva, a liberdade de transitar ou não?

Fico me perguntando de cá sobre esse trânsito. Transita de cá, transita de lá... Às vezes sou intransitiva, mesmo que a gramática não me autorize. Mesmo que o mundo me critique por isso. Às vezes transito onde não devo e para onde não posso. Faço e assim desloco e coloco luz  em um corpo que teima em ser livre, sem dicotomias.

Transitar é permitir-se ser a tal metamorfose ambulante. Não transitar é prescindir. De certas coisas prescindo.
Assim, luz e escuridão vão dando lugar a um movimento que nem é um, nem é outro. Mas que pode ser ambos, ao mesmo tempo, sem constrangimentos. Ainda que não veja, a luz oculta a escuridão.

Ou pode ser ainda, mera ignorância. E como é bom ignorar para estar aberto a ver na escuridão quando somos tão cegos em meio à abundância de luz que ora nos invade. Muita luz cega. A vastidão de informação não gera conhecimento. Ao contrário, amplia os abismos da [des]informação. A abundância é um poço sem fundo, às vezes vazio. Cuidado!

Insisto que o melhor é não saber. Não sabendo se é dia ou noite, o cego transita aspirando os odores do mundo, tateando corpos e coisas, apurando o ouvido para silêncios e sons. E cá estamos nós de novo nas dicotomias ou - diria eu - nas complementaridades.

Sei lá se entendi o que dissestes. Sei apenas que não me submeto, mas o faço sorrindo. Aprendi a ralhar sorrindo, a chorar sorrindo, a acolher seja na luz, seja na escuridão tudo o que vier como o mais perfeito presente. Ainda que isso me custe silêncio ou palavras. Eu pago o preço.

E sobre silêncios... Calo para ouvir seus sons atentamente.

E ainda assim, não me submeto.

Sua sempre,

Anita


quinta-feira, 8 de março de 2018

Faz tempo...

Querido Caio,

...faz tempo. faz tempo que faço e no feitio do tempo - em retribuição - ele me faz [ou será o contrário?].

E minha língua empena, tal como a sua. ou empena diferente? é a língua ou a linguagem que dá nó nas minhas idéias? as idéias nasceram enroladas de pai e mãe mesmo? ou foram se emaranhando no caminho?

não sei... e juro que a felicidade me pega pela mão quando percebo que não sei. a felicidade simples de saber que não sei e que essa ignorância me faz disposta a tudo. aos afetos e ao que afeta. Lígia Pappi me afeta. suas lacunas preenchidas de escuridão, suas pontes tecidas em fios dourados, arco-íris amarelos sem começo e sem fim. marcas fixas no chão sem destino. túneis sobrepostos em sombra e luz. passagens secretas para um mundo idílico: jogo de esconde esconde. sutil. como traduzir seu jogo em palavras? a língua se enrola ou me enrolo nela. sabendo e não sabendo ao mesmo tempo. vou seguindo e vou tropeçando nos tempos e nas palavras. palavras. tantas palavras. tantas línguas. erros?

percebo que não há erro quando o entendimento se dá entre duas línguas. [há?]

ainda não sei. e mais uma vez sorrio e celebro a ignorância de tudo. como é bom não saber e me expor à arte, aos jardins, aos cheiros, aos gostos, à vida e, claro, à língua estrangeira que me atravessa há mais de trinta dias. todos os dias. todas as horas do dia, mesmo aquelas mais fugidias da madrugada, entre sussurros e afagos.

e as palavras? amigas inseparáveis, pontes que me conduzem da luz para a escuridão com passagem de ida e volta. ah, as palavras... elas me faltam tanto e não fazem falta agora que fui atravessada por tantas línguas quanto conheço e mesmo por mais tantas que desconheço. dia e noite. noite e dia.

faltam palavras e línguas para expressar o que me atravessa a vida a esta altura, Caio, querido. encontrei a ponte para o sempre e ela me leva e traz todos os dias sem cobrar pedágio ou passagem. estou simplesmente feliz, já que perguntou.

Agradeço as palavras ofertadas quase com devoção. Agradeço a experiência de tê-lo do lado de lá da esperança. Agradeço.

Sua sempre,

Anita

P.S. Ver Lígia Pappi  ilumina a alma mesmo na escuridão.