Caio, querido
Nossas distâncias em lugar de nos aislar nos aproximam. Cada vez que ouço tua voz, seja nas letras, seja em tecnologias sei que somos sempre e sempre seremos. Das novas que não partilhamos, divido agora do corriqueiro que me tem assediado a cada instante. Convite para o enamoramento das pequenas cotidinianidades [isso existe?].
Não sei se sigo os dias ou se eles me seguem. Desde que voltei de Montevidéu vivo por detrás dos óculos de sol, cachecol de algodão fino ao vento, indo e vindo, me [re]constituindo, ampliando meus horizontes numa pequena cidade de cem mil habitantes.
Mas esta carta não é sobre a cidade e eu. Reservarei uma especialmente para falar desta relação diária com as descobertas deliciosas que tenho feito por aqui. Esta carta é para te dizer de janelas que abrem e fecham, de silêncios compulsórios, de tatear na escuridão em busca de clareza.
Esta é para dizer o que tu já sabes há muito e te contar que tenho percorrido caminhos não habituais. Escolhi fazer escolhas novas. Tenho me experimentado em outros papéis, em novos scripts como quem prova uma comida exótica. É um jeito bonito e poético de experimentar-me outra e escapar da dor.
Sempre fui uma alienígena. De súbito sou tão humana, com dores e sonhos tão humanos. Minha forma de transitar no mundo e nas relações antes de me esquivar da dor, agora me joga na boca do leão, me põe cara a cara com a beira do abismo. E lá, bem no alto, sinto o vento fresco da liberdade de estar noutro lugar, noutra posição do triângulo.
E num paradoxo me revelo tão imensamente pequeno burguesa, com sonhos tão pequeno burgueses. E isso tudo é julgamento, me dirias espantado. E eu te confirmarias que sou isso também. Nada extraordinário, apenas uma mulher diante de um homem querendo um parceiro de jornada.
Esta é uma carta de quereres. Quereres aprisionados num silêncio compulsório. Quereres sob a tortura discreta de uma uma janela que se abre apenas quando o dono da chave decide abrir. Sinto-me presa do lado de fora. A espera de uma janela que se abre. E que não se abre.
Tu me perguntarias o que me mantém diante da janela à espera de uma ração medida de afeto. Te dirias, sem qualquer constrangimento, que o que vi do lado de lá da janelinha me pareceu raro. Raro e belo. Forte e inexplicavelmente destoante de todo o resto.
E te confessaria, sem rancor ou pudor, que já duvido de mim e do que vi. Chego a pensar que foi miragem ou alucinação. E busco nos baús da vida referências a fantasias infantis. Sem êxito. E a areia segue escorrendo por entre os dedos e na ampulheta.
Experimento ser expectadora de minha própria história. E surpreendo-me com a experiência de ser platéia, em lugar de ser estrela. De estar na coxia em lugar de sobre o palco. Experimento por um instante ser a sub, desempenhando um papel menor em lugar de interpretar o principal.
Há algo de desconfortável em viver novos papéis, há algo de belo e algo de desafiador. E é no desafio que me reconheço. Quase posso ver teu sorriso largo se abrindo do lado daí das letrinhas. Posso te ouvir dizendo 'touché!', antecipando todo o entendimento do encanto das minhas novas andanças.
E por ser carta de quereres e de confissões, mando-te que [é o desafio também]fui capturada e talvez me negue a ser resgatada por viver a síndrome de Estocolmo. E quase ouço tua gargalhada!
Tiro os óculos [mas não o cachecol] e poderás ouvir a gargalhada com que te respondo, deixando a cabeça cair para trás, os ombros subirem para logo se dobrarem sobre mim mesma. Tudo cena, que afinal, antes de tudo e qualquer coisa, sou atriz. Tu bem sabes! Pessoa há de me entender.
Deixo-te agora, espero que sob estrondosos aplausos, tomada de saudades.
Volte logo, vivo sem você, mas não gosto.
Tua sempre,
Anita Lopes