Querido Caio X,
Tanto tempo não escrevo, tanto tempo sem mandar notícias. Apenas parcas linhas rabiscadas entre uma parada e outra da viagem. Sabes que tenho estado a perambular pelas estradas, sendo eu o percurso. Já se passaram oito meses desde nossa última mensagem telegráfica. Estou de volta, mas a volta é sempre um novo caminho. E assim é. A cidade parece a mesma, mas nem eu nem ela o somos. Os endereços não mudaram, mas mudei. E nada será como foi. Nem sei quê será. Breve estarei contigo. Preparo-me para desfrutar as horas nas Gerais e entregar-me às montanhas. Deves bem estar louco a querer saber por onde andei. Não se avexe, não que eu conto.
Perdi-me nas estradas do sertão. Tanta gente linda. Tanta gente. Subir no pau-de-arara era atravessar um jardim secreto e entrar numa cena de cinema bem fotografada. Que luz! A luz é tanta que me sinto flutuar. Meus olhos brilham seguindo a câmera subjetiva, primeiro a panorâmica da paisagem, depois um giro em busca do olhar dos outros passageiros. Calma e lentamente apresento os companheiros de viagem, um a um, uma a uma no pau-de-arara lotado de adultos, crianças, idosas, compras, e pequenos animais. Foco nos olhos do coelho no colo do sétimo menino da mulher sentada ao meu lado. Percorro o teto do veículo exibindo as mãos calejadas que seguram firmes. Finalmente deixo de olhar para ser olhada. A câmera fecha em mim. Big close. E se afasta, como se afasta o pau-de-arara, enquanto o sol se despede do dia. Cena simples, cena clássica. Nada de novo, apenas os sentimentos que me percorrem a espinha e enchem o peito de um Todo. Plenitude, leveza, suavidade, beleza. Da Chapada do Araripe, terra dos Cariri, decidi seguir a trilha dos Tremembé. Etnia litorânea. Atraída pelas histórias lindas que ouvi do pajé e do cacique João Venâncio, fui para Almofala. E naquela terra distante, perdida de mim, encontrei parte das raízes. Almofala, terra dos Tremembé, é a terra da minha bisavó materna. Atravesso os portais da ancestralidade como o ano vindouro cruza do 31 de dezembro. São meus pés agora a deixar marcas nas areias alvas e fofas da praia que contam a história de um barco que me aguça as emoções. Registro, assim como registro a voz trêmula de minha nonagenária avó contando sobre a morte de sua avó, no parto de sua mãe. Mulheres ancestrais revelando-se na estrada. Sigo as pegadas na areia, beijo ao longe o barco. O barco sozinho ao longe encalhado na maré baixa é pequeno. E os passos seguem a pisar as areias agora úmidas enquanto o barco vai crescendo diante da lente aguçada da câmera. Cada vez mais nítida, a embarcação vai revelando seu balanço solitário e sutil, como fora o passeio em pau-de-arara. E vai crescendo em presença, em beleza e solidão. Mas não é triste. Só é sozinho. Sigo caminho e assim venho seguindo a estrada em busca de nomadismos, encontrando aos poucos o que vai fazendo meu caminhar. Posso dizer, caro amigo, que finalmente descobri as raízes e, pasme, sempre estiveram aqui. Eu as trago comigo. Agora, finalmente, posso voar.
Deixo-te, já contando as horas para atravessar as montanhas de São João.
Tua sempre,
Anita L.