terça-feira, 2 de março de 2021

 


Querido Alberto, 


''A vida não é o tempo que passa, mas o momento vivido.''

(Emanoel Barreto) 


Às vésperas de completar 52 anos (cinquenta e dois anos) - sim, é amanhã - me deparo com o desafio de falar do tempo. O tempo passado e o tempo vivido. Chronos e Kairós. Que dizer? Qual minha relação com os senhores do tempo?

Passaram-se 52 anos desde que chorei pela primeira vez. Foi a primeira, mas não foi a última. Passaram-se 52 anos e neste intervalo de tempo vivi tantas vidas, tu bem sabes. Fostes testemunha, observador participante dos últimos 11 anos. Fostes parte. És parte [és?]. O isolamento me aproximou de pessoas distantes e me afastou de ti. Ou o afastamento terá acontecido antes e eu que teimava em não acreditar? 

Talvez despir minha alma diante de ti no estacionamento tenha sido o primeiro passo para o afastamento. Tu dissestes que me amavas e usastes minhas próprias palavras sobre o Amor ser maior que relacionamento para explicar tua escolha. Eu jamais discordaria de mim quanto ao Amor e assenti silenciosa, enquanto era abraçada por tuas lágrimas. 

Sim, Amor é maior que relacionamento. O Amor é vasto e o relacionamento uma garrafa que pode ou não conter amor, eu te dizia. O que não te disse é que o Amor às vezes precisa de forma. Uma forma que informa os contornos deste amor [minúsculo, mas não menor]. Ele precisa de um corpo que incorpore e que expresse. Mesmo quando a garrafa não tem rótulo ela diz. Silenciosamente ela diz quais os contornos do amor. 

Esse Amor sem forma, vasto...vasto como o voo da gaivota no céu. Este Amor amplo, leve e livre que volteia no céu como pássaro, este Amor também tem forma. Ela é mais sutil e às vezes fugidia, agora vejo, mas tem forma. E esta forma mesmo que tênue informa sua existência no mundo. Tudo o que existe tem forma mesmo que seja imagem sonora, sensória, auditiva, olfativa, mesmo que seja forma de nuvem que se modifica e se redesenha. Teu amor foi nuvem que se dissipou com o vento e hoje percebo que somos pouco mais que velhos conhecidos que já não se conhecem. No último ano e dia, restou para nós chronos.

E é neste ponto da nossa história que me dou conta de que talvez o amor, este amor que dissestes sentir não existe sem kairós. Para logo me perguntar se não viver é uma forma de viver o tempo. Se não falar é uma forma de dizer. Se omissão é ato. O direito penal diria, mesmo que não perguntado... ato comisso por omissão. Aquilo que não faço e que produz resultado exatamente pelo fazer. A omissão que produz efeitos no tempo. 

Passaram-se 11 anos do dia em que nos encontramos pela primeira vez na foyer do Teatro Nacional [ou terá sido no teatro da universidade?]. E neste tempo passado, vivemos tanto e criamos tanta ficção juntos que talvez sejamos ficção. Criamos até carne para Caio Marques. Chronos se irmanou com Kairós por algum tempo, mas em tempo se separaram antes do isolamento, no isolamento que nos tornamos. Já não somos. Já não sou [ou pelo menos preciso deixar de ser]. 

Preciso deixar ir o passado não vivido, aquilo que não passou e seguir adiante. E confesso nem sei como fazer isso. Foi preciso mais que ano e dia, bem mais que ano e dia desde a confissão no estacionamento para que eu finalmente pudesse voltar a ter voz aqui. Minha pele gritou e eu não pude escutar o som ensurdecedor que perguntava insistente: 'o que aconteceu meses antes da sua pele gritar em silencio a impossibilidade de ser tocada'. 

Meus silêncios são longos. Sou uma mulher de longos silêncios que culminam em um fim. Foi assim com todos os meus amores. Quando me calo, é que vou morrer um pouco a cada dia até me despedir. Cheguei a pensar morrer, Alberto. Deixar Maria Cláudia livre para seguir outros caminhos. Fiz uma arqueologia - adoro esta palavra - de tudo o que vivemos pronta para fazer uma carta de despedida que informasse minha morte. Seria dramático, forte, contundente. Teria minha cara. Para em seguida pensar... por que sou eu que tenho de morrer? Por que vou abrir mão da minha existência por um amor de ficção. Eu disse: Não! não os amores e dissabores de Anita Lopes, porque ela sobrevive a tudo.

Então pensei... melhor matar Caio A. Melhor deixar toda essa história de ficção em seu lugar. Foi quando notei que a dor tem corpo... e dói. Escolhi não sofrer. Escolhi não chorar e me vestir novamente diante de ti. Cobrir minha alma com uma manta quentinha e macia, me enrolar nela e me aconchegar. Assim acolhida entre meus próprios braços me reencontrei. 

Ainda há um nó na garganta, talvez ele nunca desapareça, eu o reconheço de outras lápides. Ele é o anúncio do fim de uma história. 

Este é o nosso fim. 

Jamais serei sua novamente

Anita Lopes